quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Ratos de tempos antigos


Como era mesmo o nome do personagem principal de “Os Ratos”? Urge uma revisão às páginas desse livro. Só lembro que fiquei muito impressionado com o trajeto daquele homem sem nenhuma grandeza. Dyonélio Machado não fez só o esboço, mas o desenho completo de uma figura que merece reverência. Mais do que um homem sozinho na luta pelo leite das crianças, o que eu via naquelas páginas era um símbolo do povo sofrido. Um povo que eu vislumbrava de cima do muro ou através da vidraça da janela da burguesia, sem nenhum contato mais abrangente, sem o calor da mão estendida. Quando acabei a leitura, meus 17 anos pesavam como chumbo em meio a rupturas. E tive uma noção mais exata sobre o sacrifício de viver. A partir daí, comecei a pisar na terra bruta, antevendo os desenganos do cotidiano.
O livro de Dyonélio estava na estante do meu avô, em Uruguaiana. Era uma estante grande, abrangendo duas paredes do austero escritório. Num canto da escrivaninha, imobilizado no bronze (ou era gesso?), Camões acompanhava, com o olho bom arregalado, os inseguros passos daquele rapazote no recinto com algo de sagrado. A porta estava sempre aberta e a um chamado do meu avô, entrei bem devagar e, admirado, fiquei a olhar todos aqueles livros, apertando os olhos, que a miopia já se anunciava. O livro que me avó entregou-me foi “Os Três Mosqueteiros”, de Dumas. “A juventude precisa de aventuras da vida ou da imaginação”, disse o velho, enquanto aconselhava este ou aquele título. Lendo uma média de um livro por semana, acabei ficando íntimo da biblioteca. Respeitando a máxima do meu avô, minhas preferências eram, até então, pelas aventuras rocambolescas. Até que, certo dia, minha atenção foi atraída pelo título de um livro de capa marrom e feia. Um título que era, ao mesmo tempo, chamativo e repelente: “Os Ratos”. A partir daí, minhas leituras tomaram outro rumo, com inesperados desvios.
Enquanto penetrava na história de Dyonélio Machado, eu pensava nos roedores que insistiam em rondar o velho casarão onde morávamos. Eram ratos invisíveis, que se manifestavam apenas pelos ruídos. Os mesmos ruídos que torturavam o personagem de Dyonélio e injetavam algum ânimo no meu então jeito passivo. Os nojentos bichos não deviam estar ali, na consciência daquele pobre homem, roendo o suado dinheiro para o leite. Os malditos animais deviam estar tomando baygon e se contorcendo em dores atrozes. Mas não. Dyonélio quis nos irritar com uma história tão banal, cheia de ambíguos caminhos. E o brutal realismo esfregado na minha cara eliminou todo e qualquer resquício de ingenuidade que eu ainda tinha. Sim, eram ratos diferentes esses de Dyonélio. Mais do que o usual nas investidas à cozinha, mais do que o dinheiro salvador, os ratos de Dyonélio roíam para valer era a minha consciência.
Tal a história, não era menos banal o homem que caminhava naquelas páginas, buscando a redenção em labirintos cinzentos, digladiando com a sua pequenez, tentando se erguer além do limite, chutando a vergonha para agarrar, com mãos inseguras, a tênue linha da sobrevivência. Sim, tinha um pouco de guerreiro e um pouco de palhaço. Guerreiro, pela ferrenha determinação com que se jogava naquela luta que a mim parecia inconcebível, fora do universo de espadachins metidos em grandes causas. Palhaço, diante de obstáculos tão simples, a parecer um tonto em percalços tão rotineiros, nada dignos de um D`Artagnan.
E o que dizer do leiteiro a entrar naquele universo com tamanha importância? O leiteiro indo e vindo nos pensamentos do pobre homem era como armação e disparo de dolorosas setas que entravam e saíam, saíam e entravam. E as contidas lágrimas do homem preocupado com os ratos salgavam o rio Uruguai daqueles tempos antigos. Foi um livro que roeu todos os muros e todas as distâncias. E nesse investida, eu ia junto, abrindo o meu espaço para a primeira refrega contra as injustiças do mundo. E foi aí que descobri, para horror dos comportados parentes, que também se podia fazer boa literatura com o leite. E os ratos.

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