segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Bastinhos e a ditadura


Tempos atrás, o Wolmer Jardim revelou nestas páginas a falta que faz a Uruguaiana a figura invulgar de Ângelo Martins Bastos Neto. Aí, evocando o ano de 1973, concordei, rememorando um caso envolvendo Bastinhos e este escrevinhador. Na época com 24 anos, eu era editor da “Folha de Uruguaiana” e virei alvo da ditadura por ter cometido um “crime” involuntário. Quem cuidava da redação era apenas eu, com eventuais colaboradores, além de contar com uma secretária. Certa tarde, acabei me atrasando para remeter o malote via rodoviária com os originais para Santana do Livramento, onde era impresso o semanário, nas oficinas de “A Platéia”. Na pressa, acabei colocando junto às matérias um telegrama do governo federal. Quando saiu o jornal, o teor do telegrama estava impresso justamente na capa da edição. Dizia que ‘estava terminantemente proibida a veiculação de qualquer notícia sobre a Frente Ampla do MDB’. Essa Frente, com Pedro Simon e Ulisses Guimarães, tentava montar um partido de oposição ao governo militar.
No mesmo dia, dois integrantes da Polícia Federal de Uruguaiana me “convidaram” a comparecer na sua sede, junto ao prédio da Receita Federal, nas proximidades da Ponte Internacional. Fui colocado numa sala e dois agentes começaram a fazer perguntas, às quais eu não respondia. Minutos depois, chegou ao local, avisado sabe-se lá por quem, o advogado Ângelo Martins Bastos Neto. Mal ele entrou, chamou os policiais em particular. Minutos depois, saí dali com Bastinhos, que disse para não me preocupar mais com aquilo. “Qualquer coisa, me avisa”, acentuou.
Embora tenha me safado no primeiro dia, os agentes da PF insistiam em levar-me novamente. No dia seguinte, um amigo da Receita Federal alertou: os federais iriam me ‘recolher’ novamente. Avisei Bastinhos, que apareceu no jornal com um acompanhante muito especial: o então vice-prefeito de Uruguaiana, Newton Ulrich, também advogado. Na época, Uruguaiana tinha prefeito e vice nomeados, por ser área de segurança. Bastinhos e Ulrich eram da Arena, o partido da situação durante os anos de chumbo.
Pois chegaram dois agentes para me ‘convidar ao passeio’. Lembro do jeito abobalhado deles, ao encontrar aqueles dois respeitáveis defensores ao meu lado, com Bastinhos dizendo que nós iríamos no seu carro. Na sede da PF, eles se trancaram num escritório e saíram logo depois. Imagino o que houve naquela sala em matéria de persuasão. Nunca mais me incomodaram e eu fiquei com uma gratidão eterna a esses dois homens que estavam acima de siglas e ideologias, vendo em mim apenas um jovem jornalista injustiçado por uma ação involuntária.
Dois dias depois, um combativo vereador do MDB, Arnaldo D’Augustin Ribeiro, usou a tribuna da Câmara Municipal para louvar “a ação corajosa do jornalista Newton Alvim contra a censura à imprensa”, com o discurso incluído em ata e repetido nas rádios locais. Fiquei novamente preocupado e até deixei de sair à noite por uns tempos, já que andava na berlinda de uma maneira que muitos tentavam evitar – por receio e medo, sabendo que além da ponte, em Paso de Los Libres, havia uma chácara onde sumiam dissidentes argentinos e também brasileiros. As duas ditaduras se completavam além do Rio Uruguai.
Assim, não nego que tive sorte e às vezes me pergunto o que iria ocorrer se não fossem aqueles dois arenistas renitentes diante da ditadura. Ao indagar a Bastinhos sobre os honorários, ele esboçou aquele seu sorriso triste e disse: “Não deve nada, rapaz. Fizemos nossa obrigação”. Newton Ulrich assentiu com a cabeça. Hoje, os vejo como anjos da guarda habitando o meu alforje de afetos.
Na foto, este colunista entrevista Bastinhos, na década de 70
Arquivo pessoal

Entrevistando Martha


Consagrada como cronista, Martha Medeiros anda sem tempo para nada, agora que os compromissos aumentaram devido ao sucesso do filme “Divã”, baseado em seu livro do mesmo nome, que antes de ir para a tela fez uma bela carreira no teatro e pode ser conferido nas videolocadoras da cidade. Hoje com 48 anos, aparentando bem menos, ela diz estar com “o espírito muito mais aberto do que tinha antes” e que “escrever é terapêutico”. Casada, duas filhas, faz caminhada e musculação. Adora ler, viajar, vinho tinto e cinema. Ah, não fuma nem faz terapia e torce pelo Internacional. Entre uma e outra brecha na sua agenda, nossos e-mails se cruzaram várias vezes e o resultado é esta proveitosa entrevista. Deliciem-se.

Como você consegue essa quase unanimidade em torno de suas opiniões sobre os mais diversos assuntos? O segredo estaria em se expor sem reservas?
MARTHA - Todos que escrevem se expõem, principalmente quem escreve sempre na primeira pessoa, como eu. A alma fica escancarada e isso estabelece certa cumplicidade com o leitor. Não acredito que eu seja uma unanimidade. Há gente que não gosta do meu trabalho, só que costumam não se manifestar, o que atribuo a um respeito que conquistei, ou seja, não gostam, mas percebem que existe honestidade no meu ofício. Mas, para minha sorte e prazer, são muitas as pessoas que se identificam com o que escrevo e acho que isso acontece porque trato sobre assuntos mundanos com leveza e seriedade ao mesmo tempo.

Essa sensibilidade que mostra nas crônicas foi exposta a partir de que idade? A época da adolescência influiu muito na Martha de hoje?
MARTHA - Eu era bem mais fechada, introspectiva, e lia muito, o que me deu certo embasamento. Mas só comecei a expor meus sentimentos e ideias a partir da fase adulta. Costumo brincar que na adolescência eu era uma velha e hoje, aos 48, me sinto mais jovial, mais animada, mais disposta para o que a vida traz. Tenho o
espírito muito mais aberto do que tinha antes.

Quando escolhe um tema já sabe como explorá-lo e o texto sai com facilidade? E ocorre quando o assunto não avança?
MARTHA - Eu escolho o tema, mas só vou saber o que realmente penso sobre ele enquanto escrevo. As palavras jorram no automático, é quase uma psicografia! Eu mesma me surpreendo, às vezes, com o rumo que a crônica tomou. Por isso que eu digo que escrever, para mim, é terapêutico, promove meu autoconhecimento até hoje. E há ocasiões em que empaco, sim. Tem vezes que meu raciocínio se encerra num único parágrafo. E aí o que fazer para preencher o resto do espaço? Nessas
Horas, é preciso desistir do texto e começar outro.

A sensatez pauta o que você escreve, junto a um sentido de liberdade que parece aliviar seu cotidiano. Até que ponto a Martha se desnuda nas crônicas?
MARTHA - Só existe a Martha verdadeira, não existe outra. Em tudo o que faço, vivo, sofro e me coloco inteira. Não há um personagem por trás, mas claro que não somos blocos monolíticos. Eu tenho o meu lado de aventureira, meu lado careta, meu lado convencional, meu lado roqueira, meu lado maternal, meu lado masculino, meu lado mulherzinha. Enfim, não me reduzo a um único perfil, mas me sinto muito íntegra nessa pluralidade, que, volto a dizer, não é só minha, é característica de todos nós. Mesmo quando escrevo ficção, não consigo me afastar muito de quem sou.

Um novo livro à vista, neste ano? Pretende voltar à poesia?
MARTHA - Pretendo, mas os dias passam tão ligeiros, há tantos compromissos, tantas viagens, tantos prazos de entrega... A crônica me absorve muito e a poesia demanda certa paz para escrever. Não estou conseguindo “agendá-la” no meu corre-corre, mas é um compromisso que estabeleci para mim: ano que vem, publicarei novos poemas e também um novo livro de ficção. Não haverá lançamento neste ano, que incrivelmente já está na sua metade final.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Como contar um conto


Você já pensou em se dedicar ao conto? Pois a L&PM está dando um raro presente, lançando, em nova e caprichada edição, o “Decálogo do perfeito contista”, do uruguaio Horacio Quiroga, com organização de Sergio Faraco e Vera Moreira. Conhecedor da obra desse grande contista uruguaio, Faraco traduziu diversos de seus títulos. Este manual é uma obra crítica com a força narrativa de Quiroga, em uma versão enriquecida com bibliografia sobre o ofício da escrita para os novos autores que desejam persistir na ficção, sobretudo no conto, além de uma cronologia da vida e obra desse gênio da história curta.
Afinal, até que ponto funciona um receituário para a escrita? Quem está metido no ramo sabe que isso pode ser em vão. No entanto, em alguma coisa ajuda, como acreditava Quiroga, que se suicidou em 1937, depois de uma vida de seguidas tragédias. O certo é que ele aprendeu a escrever muito bem e procurou deixar isso para a posteridade. Fã do autor uruguaio, Sergio Faraco, que vem a ser um dos melhores contistas brasileiros, enriqueceu o “Decálogo...” com as impressões de importantes autores, que se apressam em dizer que não há fórmula infalível para escrever bem.
Tudo bem, a gente já sabe que não existe o grande segredo. Mas, como ressalta Faraco, há alguns preceitos deste manual de 168 páginas que são bem-vindos para os que se aventuram a escrever. Quiroga ensina, por exemplo, a contar uma história a partir do seu final, o que não deixa de ser interessante. O resultado é um livro curioso, com comentários às vezes irônicos, às vezes engraçados de Aldyr Garcia Schlee, Charles Kiefer, Cíntia Moscovich, Deonísio da Silva, Fábio Lucas, Flávio Moreira da Costa, Hélio Pólvora, Jacob Klintowitz, Jaime Prado Gouvêa, José Castello, Luís Augusto Fischer, Luiz Antonio de Assis Brasil, Marcelo Backes, Miguel Sanches Neto, Moacyr Scliar, Nelson de Oliveira, Paulo Hecker Filho, Roberto Gomes, Silveira de Souza e Sonia Coutinho. Uma turma que diz o que pensa com autoridade.
Claro que a maioria dos escritores concorda que um ponto é essencial: é preciso ler muito para escrever bem. E no caso do conto, é preciso ler Faraco e Quiroga. Vale acrescentar: deve-se ler os que sabem realmente escrever, assim como apreender suas dicas espalhadas em entrevistas ou nas memórias. O primeiro conselho é meter a cara e escrever de qualquer jeito e depois ir melhorando, podando o excesso, principalmente adjetivos - onde os iniciantes exageram. O processo é lento, individual, solitário e muitas vezes sofrido. As oficinas literárias, como a da Vera Ione Molina Silva, ajudam a encurtar o caminho e a não fazer bobagens, a sofrer menos, a ter disciplina e dedicação. Isso já é bastante para um aprendiz, que deve ser imensamente grato.
Sobre o conto, costuma-se dizer que em cada parágrafo há duas frases decisivas: a primeira e a última. Esse é um bom atalho para chegar lá e Quiroga sabia fazer isso como o mestre que era. Fernando Sabino costumava dizer que “é preciso descascar o texto como quem descasca uma fruta, ir buscar a semente. Escrever é principalmente cortar”. Isso mesmo, cortar, cortar, como faz Faraco e como fazia Quiroga. Outro mestre do texto curto, o argentino Jorge Luis Borges, começou uma aula dizendo: “Dediquei a maior parte da minha vida à literatura e só posso lhes oferecer dúvidas”. Nada mais verdadeiro. Dúvidas sempre acompanham os escrevinhadores de textos longos e curtos até o fim da vida. A chave desse ofício não existe, apesar da tentativa de Quiroga em provar o contrário com seus 10 mandamentos, que pelo menos mostram algum rumo confiável. O segredo é tatear no escuro até encontrar a fechadura. E não raro, dá-se de cara na porta errada. Em suma, escritores são uns teimosos irremediáveis.

Ratos de tempos antigos


Como era mesmo o nome do personagem principal de “Os Ratos”? Urge uma revisão às páginas desse livro. Só lembro que fiquei muito impressionado com o trajeto daquele homem sem nenhuma grandeza. Dyonélio Machado não fez só o esboço, mas o desenho completo de uma figura que merece reverência. Mais do que um homem sozinho na luta pelo leite das crianças, o que eu via naquelas páginas era um símbolo do povo sofrido. Um povo que eu vislumbrava de cima do muro ou através da vidraça da janela da burguesia, sem nenhum contato mais abrangente, sem o calor da mão estendida. Quando acabei a leitura, meus 17 anos pesavam como chumbo em meio a rupturas. E tive uma noção mais exata sobre o sacrifício de viver. A partir daí, comecei a pisar na terra bruta, antevendo os desenganos do cotidiano.
O livro de Dyonélio estava na estante do meu avô, em Uruguaiana. Era uma estante grande, abrangendo duas paredes do austero escritório. Num canto da escrivaninha, imobilizado no bronze (ou era gesso?), Camões acompanhava, com o olho bom arregalado, os inseguros passos daquele rapazote no recinto com algo de sagrado. A porta estava sempre aberta e a um chamado do meu avô, entrei bem devagar e, admirado, fiquei a olhar todos aqueles livros, apertando os olhos, que a miopia já se anunciava. O livro que me avó entregou-me foi “Os Três Mosqueteiros”, de Dumas. “A juventude precisa de aventuras da vida ou da imaginação”, disse o velho, enquanto aconselhava este ou aquele título. Lendo uma média de um livro por semana, acabei ficando íntimo da biblioteca. Respeitando a máxima do meu avô, minhas preferências eram, até então, pelas aventuras rocambolescas. Até que, certo dia, minha atenção foi atraída pelo título de um livro de capa marrom e feia. Um título que era, ao mesmo tempo, chamativo e repelente: “Os Ratos”. A partir daí, minhas leituras tomaram outro rumo, com inesperados desvios.
Enquanto penetrava na história de Dyonélio Machado, eu pensava nos roedores que insistiam em rondar o velho casarão onde morávamos. Eram ratos invisíveis, que se manifestavam apenas pelos ruídos. Os mesmos ruídos que torturavam o personagem de Dyonélio e injetavam algum ânimo no meu então jeito passivo. Os nojentos bichos não deviam estar ali, na consciência daquele pobre homem, roendo o suado dinheiro para o leite. Os malditos animais deviam estar tomando baygon e se contorcendo em dores atrozes. Mas não. Dyonélio quis nos irritar com uma história tão banal, cheia de ambíguos caminhos. E o brutal realismo esfregado na minha cara eliminou todo e qualquer resquício de ingenuidade que eu ainda tinha. Sim, eram ratos diferentes esses de Dyonélio. Mais do que o usual nas investidas à cozinha, mais do que o dinheiro salvador, os ratos de Dyonélio roíam para valer era a minha consciência.
Tal a história, não era menos banal o homem que caminhava naquelas páginas, buscando a redenção em labirintos cinzentos, digladiando com a sua pequenez, tentando se erguer além do limite, chutando a vergonha para agarrar, com mãos inseguras, a tênue linha da sobrevivência. Sim, tinha um pouco de guerreiro e um pouco de palhaço. Guerreiro, pela ferrenha determinação com que se jogava naquela luta que a mim parecia inconcebível, fora do universo de espadachins metidos em grandes causas. Palhaço, diante de obstáculos tão simples, a parecer um tonto em percalços tão rotineiros, nada dignos de um D`Artagnan.
E o que dizer do leiteiro a entrar naquele universo com tamanha importância? O leiteiro indo e vindo nos pensamentos do pobre homem era como armação e disparo de dolorosas setas que entravam e saíam, saíam e entravam. E as contidas lágrimas do homem preocupado com os ratos salgavam o rio Uruguai daqueles tempos antigos. Foi um livro que roeu todos os muros e todas as distâncias. E nesse investida, eu ia junto, abrindo o meu espaço para a primeira refrega contra as injustiças do mundo. E foi aí que descobri, para horror dos comportados parentes, que também se podia fazer boa literatura com o leite. E os ratos.

Mal de Bartleby


Descobri que durante mais de 10 anos fui acometido do Mal de Bartleby. Não, nada a ver com a saúde deste escrevinhador sessentão, felizmente. É uma síndrome que faz os escritores desistirem de escrever. Uma reportagem na edição de abril da revista "Literatura" elucida essa doença de escritores. Os motivos são variados, como a sensação de que tudo já foi dito, a impressão de que a literatura caminha para o seu fim ou a simples falta de inspiração. Muitos desistiram por medo, outros por acharem a escrita inútil ou devido a uma autocrítica mordaz.
Leio na reportagem que o nome da síndrome surgiu a partir do conto "Bartleby, o escrivão", de Herman Melville, o autor de"Moby Dick". Na história, o tal Bartleby trabalha num escritório de Wall Streeet e passa os dias a negar a própria existência. A cada tarefa que recebe, ele apenas afirma que "preferia não fazer". Pois esse cara que "preferia não fazer" tornou-se sinônimo para os "escritores do não", por meio do autor espanhol Enrique Vila-Matas. No seu livro "Bartleby e Companhia", Vila-Matas disseca dezenas de autores que desenvolveram a síndrome e mostra que escrever é uma atividade de alto risco. Alguns desses autores que renunciaram à escrita foram Rimbaud, J.D. Salinger, Juan Rulfo, Nicolai Gogol, Juan Ramón Jimenez e o brasileiro Raduan Nassar, autor de "Lavoura arcaica".
Pois essa sombra de Bartleby, para quem busca o melhor, significa que o ato de escrever é cheio de dificuldades que muitas vezes arrasam os escritores. Como disse o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar, na mesma reportagem, "a gente tem que combater, ao mesmo tempo, a facilidade e a dificuldade. Por isso, a literatura é tão difícil. Ela é uma medida e nem todos admitem o possível, todos querem o ideal". Aqueles que escrevem assinam embaixo, esperando parar após escrever algo próximo de um best-seller.

O laço de James Dean


A minha geração foi fortemente influenciada pelo cinema e isso se perpetuou pela vida afora. Nos anos 50, 60 e 70, em Uruguaiana, a sétima arte tinha um papel importante na formação de opiniões e na formatação do comportamento dos jovens. Crescemos sem a massificação da TV e a diversão estava na rua, no centro, nos dois cinemas centrais, o Corbacho/Pampa e o Carlos Gomes. Resumindo, estávamos sempre dentro dos cinemas ou em volta deles, assistindo a filmes hoje memoráveis e dedicando-nos a uma paquera muitas vezes platônica, geralmente inocente, em torno da Praça Barão do Rio Branco.
Verdade é que a influência do cinema era tanta que acabávamos, mesmo sem querer, imitando personagens que tinham uma vivência de visível encanto e queríamos isso para nós. Sim, copiávamos os astros, pelo menos o seu jeito, algo singular que se destacava. Podia ser o olhar sensual do Marlon Brando, as sobrancelhas arqueadas do Sean Connery ou cerradas do Clint Eastwood. Lembro de um amigo que imitava James Dean brincando com seu laço em “Assim caminha a humanidade”. Na verdade, não era um laço, mas sim uma corda, como eu saberia anos depois.
O amigo fazia círculos em cima de círculos com o laço, assumindo um jeito ora displicente, ora enigmático, olhando para um lado, como fazia o rebelde Jett Rink, cercado por astutos homens de negócios num Texas emergente em petróleo. Filho de estancieiro daqui de Uruguaiana, meu amigo se vestia como caubói e brincava com o laço a me perguntar se não estava igual a Dean. Eu alegava não lembrar da cena do laço e ele se irritava, perguntando o que eu estava fazendo no cinema nessa hora. Pois é, o que eu fazia mesmo enquanto Dean esboçava essa cena antológica para a plateia? Não lembro mesmo. Talvez eu estivesse somente interessado no olhar violeta da Elizabeth Taylor ou na inquietude de alguma garota ao lado.
Esse caso é para ilustrar o que o cinema fazia com a gente, na época. Nós assumíamos a admiração por momentos fascinantes que a telona oferecia aos jovens de uma cidade fronteiriça sem muitas escolhas. Claro que, mais do que os pais, foram os filmes que nos ensinaram a paquerar, a dar o primeiro beijo, a assumir trejeitos de astros para conquistar garotas aparentemente inacessíveis. O amigo treinava tiro de laço, mas não se interessava em pegar um bovino aspado. Queria apenas fazer o truque do laço que achava ser o mesmo que Dean mostrava no filme derradeiro, que terminou pouco antes de morrer estupidamente, arrebentando o carro numa estrada deserta da Califórnia. Era a tal rebeldia sem causa. A gente pouco entendia disso, do que era ser rebelde naquele tempo em que James Dean personificava um ícone cultural, com as angústias próprias dos anos verdes.
Mais do que dominar uma corda e andar como um caubói, a gente assumia os bons valores dos mocinhos de tantos filmes, já que eram referências que vinham de fora de maneira avassaladora. Assim, aprendemos a nos comportar com as garotas, a bancar o cavalheiro em todos os momentos, a driblar os pendores de ser um canalha. Sim, nossa personalidade era forjada ali, no escurinho do cinema, onde o mundo real virava um reboliço e parecia entrar na tela – ou era o contrário? Ah, claro que no meio dessa sucessão de influências havia o sonho de viver um grande amor, como bem acalentavam as meninas da época. A personalidade de quem se movimentava na tela parecia se irradiar para o mundinho de garotos que apenas sonhavam ter um pouco do charme de James Dean, mesmo sem o tal laço.
Meu amigo do laço está por aí, na cidade ou nas terras que herdou do pai, e certamente ele vai ler estas linhas com um sorriso cúmplice, lembrando o quanto era bom se confundir entre realidade e ficção, saindo do cinema com o desejo de fazer coisas boas e saudáveis. Sei que James Dean continua seu ídolo e que revê “Assim caminha a humanidade” e os dois filmes anteriores do astro, na sala de cinema que montou em sua bela casa, com a cumplicidade da mulher, dos dois filhos e de três netos. “Realmente, era uma corda”, me disse certo dia, rindo, confirmando o que lhe contara há uns cinco anos, entre boas reminiscências. Corda ou laço, pouco importa. A influência é eternizada e isso ganhou mais valia quando ele acrescentou: “Nós também éramos mocinhos. À nossa maneira, mas éramos”. Fiz que sim, lembrando as aventuras e paixões que fizeram parte do cotidiano de garotos comuns que amavam o cinema e tinham vontade de mudar tudo ao gosto deles.