quarta-feira, 14 de julho de 2010

Lembrando Rillo




No mês passado, São Borja lembrou os 15 anos de morte de Apparício Silva Rillo, um dos maiores expoentes culturais do Rio Grande do Sul. Ainda adolescente, nos anos 60, em Uruguaiana, eu entraria em contato com sua poesia, através do primeiro livro, “Cantigas do tempo velho”. Esse volume marcaria o início de sua exitosa carreira literária, que incluiria poesias, composições musicais, ensaios históricos e até textos para teatro, além dos famosos causos reunidos na série “Rapa de tacho”, um dos maiores sucessos editoriais gaúchos, com mais de 70 mil exemplares vendidos.

Meu primeiro contato com Rillo ocorreu durante a Mostra da Arte Missioneira realizada no Clube Harmonia, em setembro de 1983. Na época, estávamos juntos numa sessão de autógrafos. Eu lançava meu livro “Dioguinho Manta”, enquanto Rillo autografava sua nova obra, “Itinerário de Rosa”. Um mestre e um aprendiz, com a ocasião servindo para conversarmos sobre literatura e trocar amabilidades. Ele me presenteou com o desenho publicado acima, dizendo: “Fica com esta garatuja, como lembrança.” Não deixei por menos e dei-lhe a caricatura de um gaúcho, com uma dedicatória que não lembro. Sua esposa, Suzy Rillo, simpática, elegante e discreta, estava por perto e pediu-me um autógrafo no meu livro, para as filhas.

Eu veria Rillo somente em outra ocasião, igualmente em São Luiz Gonzaga, durante uma das edições da Feira do Livro da Prefeitura. Ele me saudou assim: “Mas é o Alvim do Dioguinho!” Gostara do livro e me fez perguntas sobre o que eu andava escrevendo, dando palavras de incentivo. De bom coração, era um dos poucos escritores que se interessava pelo que os outros andavam criando, escrevendo, musicando. Assim, incentivou o aparecimento de vários poetas e compositores. No final da feira, junto com alguns amigos, fomos para o Restaurante San Francisco, onde ele fez questão de acompanhar a apresentação musical que ocorria na ocasião. Adorava a música que falava dos costumes campeiros e da condição do gaúcho, seu cavalo e a rotina campesina.

A obra de Rillo, de cunho regionalista, lhe deu a condição de ser um dos grandes poetas do Rio Grande do Sul. E foi além, pois se identificou como um dos poucos que soube se dividir entre o verso regionalista e o de cunho universal. Eclético, enveredou pelo conto, pela novela, pelos trabalhos de fundo histórico e folclórico, com um texto leve e envolvente. No meio, sempre, estava o gaúcho enveredando pelos bolichos, onde encontrava a cachaça, a carpa para o jogo do truco e as canchas para a bocha e o jogo do osso. Ele retrataria os tipos mais singulares da vida campeira, como o fazendeiro, o peão de campo, o capataz, o esquilador, o tropeiro, o domador, o carreteiro e o contrabandista, o jogador profissional e até o chamado "orelhador de sota" dos comércios de carreira.

Isso tudo está nos poemas de “Cantigas do tempo velho” nos livros que viriam depois como “Viola de canto largo” e “Caminhos de viramundo”. Esses livros e outros estão à disposição de quem quiser conferir, na Magia das Letras. Publicando seus poemas na imprensa de Porto Alegre, Rillo era equiparado a Jayme Caetano Braun e Glaucus Saraiva. O merecimento literário valeu-lhe uma cadeira na Academia Rio-Grandense de Letras, em 1981, além de um sem-número de títulos, láureas e prêmios. Quando o acompanhei naquela sessão de autógrafos no Clube Harmonia, ele já era tudo isso e parecia professar uma lição de humildade. Num dos livros que me ofertou, anotou no rodapé: “Escreva sem se preocupar com os outros. O que vale é a tua crença.” Assim era Rillo, um artista da palavra que sabia valorizar a simplicidade. Com aquela mesma humildade que vemos neste desenho inédito - que nos toca e comove.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Um dia em Paris

Vendo um anúncio sobre o filme “Um dia em Paris” (que ainda vou assistir), peguei o mote para esta crônica. Ah, se eu ganhasse um dia para visitar Paris, que fosse no início da primavera ou no começo do outono, como sugeriu uma amiga que reside lá. Assim, não estaria muito quente e os dias seriam mais bonitos. Eu percorreria aqueles caminhos milenares na certeza de que nada escaparia ao meu olhar sequioso em alcançar as etapas que se descortinariam com natural generosidade. Diante da Cidade-Luz a celebrar os 120 anos da Torre Eiffel, eu estaria atento a tudo e subiria ali de um jeito abobalhado, cheio de espanto diante da vista deslumbrante. E como um hóspede teimoso, me demoraria além do permitido, imaginando as histórias ambientadas naquele ícone de ferro e charme.
Com um dia para percorrer Paris, eu seria caminhante, munido de um guia imaginário. Saberia conter a sofreguidão de querer abarcar todas as paixões parisienses de uma só vez, dizendo em voz baixa que o tempo é mais do que suficiente. Sim, um tempo necessário para ser caminhante por ruas de tantas construções antigas, incluindo a Catedral de Notre Dame, onde poderia avistar, espreitando de dentro de um nicho, o corcunda Quasimodo com a cara do Anthony Quinn naquele filme famoso. Olharia com fingido desdém para as vitrinas de luxo de Champs Élysées, concentrado em imaginar qual o ponto exato em que a linda Jean Seberg conheceu Jean-Paul Belmondo, no clássico “Acossado”.
Com um dia para desbravar Paris, ignoraria os mapas para turistas apressados e buscaria a poesia das ladeiras de Montmartre, entre bares, restaurantes e todos os cantos que possivelmente guardam as marcas dos passos de escritores e artistas que um dia buscaram a fama e tinham a certeza que estavam no lugar certo. Eu teria disposição de menino para subir as intermináveis escadarias do Sacré Coeur e lá no alto ficaria rodopiando diante da vista que se descortinaria como um presente inimaginável. Eu olharia para os pintores de rua, diante das portas do templo, como se fossem irmãos da poesia e compraria um dos seus quadros com admiração incontida, como alguém fez décadas atrás, levando para casa uma obra daquele desconhecido espanhol que assinava Picasso – que agora tem por lá um museu no Marais, o qual visitaria por causa das suas telas iluminadas.
Ah, se eu ganhasse um dia para conhecer Paris, meus sapatos me levariam às margens do Sena. Aí, eu deteria o olhar nas suas águas, meio enlevado em longos minutos. Depois, percorreria as vielas líricas do Quartier Latin, onde numa época sonhei morar, talvez motivado pela rebeldia da juventude. Eu me veria perdido por ali, caminhando mais um pouco e entrando num dos tantos bistrôs do Marais, onde beberia algo característico do lugar, como fizeram Hemingway e seus companheiros da Geração Perdida, sob o olhar complacente de Gertrude Stein. Por ali, certamente enfeitiçado, eu poderia inventar de não voltar, já que a vida é tão curta e a chance de vivê-la de verdade seria aquela e nunca mais.
Com um dia para conhecer Paris, faria o tempo se alongar, mesmo parecendo ainda mais curto para tanta grandiosidade retida no lugar. Eu olharia os casais apaixonados e me sentaria à mesa de um café na calçada e pediria um Bordeuax, que os franceses chamam de “gran vin”. Depois, enlevado, me dirigiria para os lados dos cabarés de Place Pigalle e conversaria com habitantes da noite sobre os mistérios escondidos daquelas ruas existencialistas. Também iria ao Moulin Rouge e desbravaria suas adjacências, achando ter percorrido muito e sabendo que ainda faltaria tanto para chegar ao âmago da cidade.
Ah, se eu for a Paris, mesmo por apenas um dia, tudo o mais não teria importância e eu me sentiria como um caminhante privilegiado entre as tantas estrelas e aquela única luz que faz dessa a cidade sonhada pelos que amam a vida na plenitude. No final do passeio, olharia para baixo e veria, com a naturalidade dos poetas que gostam de caminhar, que meus sapatos estariam floridos por ter pisado naquele chão abençoado pelos que sabem viver.

Alex garcia, um lutador


Neste sábado, finaliza a Semana Internacional da Surdocegueira, como bem nos alertou o Alex Garcia, especialista graduado em Educação Especial e presidente da Associação Gaúcha de Pais e Amigos dos Surdocegos e Multideficientes (Agapasm). Sempre atento aos que sofrem com a perda das cores e dos sons, ele faz da vida um compromisso com a dor alheia, ensinando a todos que é possível viver com limitações, por mais duras que essas sejam. Antes de tudo, sabe ser um lutador como poucos. E sempre foi assim, desde a infância, quando questionava os professores sobre seus direitos na escola, como reza a Constituição que poucos conhecem e acatam. Assim, brigando pelo certo e justo, foi se instruindo, até obter o sonhado diploma em Educação Especial, na Universidade Federal de Santa Maria. Sabendo seu rumo, inquieto, Alex ainda fez Especialização. Hoje, é um respeitado nome na área, sempre convidado a dar palestras no Brasil e no exterior.

No seu livro “Surdocegueira – Empírica e científica” (Gráfica A Notícia, 2008), Alex Garcia conta que “as dificuldades que tive na universidade foram muitas e variadas. Mas acredito que o que mais me marcou foi a falta de valorização, consideração e respeito às minhas diferenças por parte de colegas e professores. Claro que muitas dessas dificuldades entendia como naturais, pois eu era o primeiro aluno com deficiência que chegara ao curso de Educação Especial, em toda a história da UFSM”. Pioneirismo, aliás, é uma marca na trajetória do filho mais velho de dona Eloá e seu Enio e irmão de Alan, acadêmico de Educação Especial. Como frisou Alex, essa universidade não estava preparada para recebê-lo. Vencendo obstáculos a cada dia, ele foi assimilando as diferenças, errando muito, acertando algumas vezes, mas sempre em pé, cabeça erguida, dizendo e repetindo a que veio nessa luta renhida que se chama vida.

Portador de uma rara síndrome que inclui a surdocegueira e outras anormalidades, Alex Garcia, no entanto, é dono de uma força de vontade inabalável. Por isso os desafios são com ele mesmo. Os amigos sentem-se bem na sua companhia por ser um animador nato que costuma fazer piadas, numa forma de animar os outros diante de alguns olhares de desdém e de palavras envenenadas pelo preconceito que vez e outra surgem por aí. Mesmo com a soma de duas grandes deficiências, ser cego e surdo, ele sabe tirar grandes lições do seu cotidiano. Sua voz é clara e bonita e conquista as pessoas em grandes espaços. Sabe ser um bom orador no improviso que moldou sua luta com o que tem de mais valioso: o cérebro. O que está na sua cabeça tem sons, cores e movimentos e é lá que ele domina todos os sentidos com independência e desenvoltura, vencendo o silêncio e a escuridão.

É o ato diário de ir além que faz de Alex Garcia alguém especialmente diferente. É o ato de assimilar o mundo ao redor que o distingue dos outros e o faz aproveitar cada momento da vida e suas contingências. Para um surdocego sempre há várias metas que se impõem, como bem sabe Alex, que assimila as perdas com um sorriso um tanto amargo, como os desses heróis que nos ensinam lições de vida que merecem ser recontadas. Aliás, o termo “herói” também se encaixa em Alex, assim de brincadeira, assim de verdade, como quis uma escritora cearense, ao escolhê-lo como protagonista do seu livro para crianças. É esse herói que está a dizer que “não importa o quanto as coisas estão e são difíceis. Desistir seria depor as armas antes da luta. Eu posso perder, mas somente depois de ter tentado”. Essas são palavras de Alex Garcia, um lutador.

A sucessão de dificuldades moldou a personalidade de Alex, que continua a encarar a vida naquilo que há de mais desafiador, que é a conquista da inclusão e a chance de modificar o sistema vigente, visando uma vida mais digna para os deficientes. Ele nunca desiste de ser crítico sob uma ótica construtiva e reflexiva e, por isso mesmo, abraça as mais diversas causas para que todos possam exercer plenamente a sua cidadania. Desde os anos escolares, sua luta é constante, o que torna alentado seu currículo de batalhas ganhas. Alex define-se como um idealista, desses que querem ajudar a mudar o mundo, como contou no seu livro. “Serei sempre aquele que irá lutar contra a injustiça, a exploração, o preconceito. Enfim, onde houver um problema, eu poderei estar presente, defendendo a liberdade, a igualdade e a dignidade, sempre com esperança”. Assim falaria um herói. Assim fala Alex Garcia, um lutador que renova sua esperança em cada amanhecer.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Um poeta no telhado


Outono de 1964, em Uruguaiana. Um adolescente de 15 anos, sentado no degrau de entrada de sua casa, se espanta em ver vários policiais invadindo a quadra em que morava, na Rua João Manoel, entre a Duque de Caxias e a 15 de Novembro. O alvo dos homens da lei é o armazém “O Melhoral”, que se encontra fechado. Eles cercam o estabelecimento e tentam forçar as duas portas da frente, diante de uma plateia que sai do nada e se aglomera em volta.
Mais distanciado, o adolescente, que era eu, observa aquilo como uma cena de cinema, com os policiais empunhando rifles e pistolas, sob as ordens de um delegado que não para de gritar. Mas eles procuram o Seu Jacy, um homem quieto, que vive da venda de secos e molhados? Era esquisito, aquilo. De repente, minha atenção é atraída por algo que se movimenta no telhado. É a cabeça inquieta de um homem de cabelos revoltos e grisalhos nas têmporas. Ele olha para os lados e avança devagar, até dar um salto para o telhado da casa vizinha, onde mora a família do hoje escritor Tabajara Ruas. Após esse movimento, o homem sonda o terreno e me avista. No instante seguinte, coloca o dedo indicador na boca, pedindo silêncio. Com o coração aos arrancos, fico quieto. Olho para o armazém e vejo os policiais entrando pela porta arrombada. Quando volto o olhar para o telhado, o homem havia sumido.
Contaram depois que o Seu Jacy havia abrigado um poeta comunista que esteve exilado sob perseguição do Estado Novo de Getúlio Vargas e na ocasião fazia frente ao regime militar. Seus livros foram apreendidos no vagão de um trem da estação de Cacequi, então sempre apinhada de gente, devido às baldeações. O poeta havia se aproveitado da multidão e escapara daquele trem e os policiais souberam que estava a caminho de Uruguaiana. Curioso, perguntei se alguém na vizinhança tinha um de seus livros e me olharam com estranheza. O que eu estava querendo com os livros de um comunista? Duas comadres disseram que iriam advertir meus pais “sobre essa pergunta do guri besta que podia complicar a vida de todos”.
Corte para verão de 1972, em Sant`Ana do Livramento. Um homem magro e ágil sobe os degraus de um casarão que abrigava o jornal “A Plateia”. Na redação, queria divulgar os livros e um álbum de postais que carregava. Era o poeta alegretense Laci Osório, então com uns 60 anos. Eu e o jornalista Moisés Mendes – hoje editor especial de “Zero Hora” – fomos incumbidos de entrevistá-lo, eu pela ligação com a literatura e Moisés ser também originário das margens do Ibirapuitã.
Na ocasião, eu e Moisés ficamos encantados com as palavras criativas que ele colocava nas respostas, dando um valioso testemunho à nossa geração e à importância que dava às questões sociais. Para ele, a arte era um bom motivo de combate e isso fazia da maneira que conhecia, valorizando o ser humano, principalmente as classes exploradas. “Eu faço letras que cantam e lutam”, frisava. Na despedida, a sós, revelei que era o adolescente que o avistara num telhado, em Uruguaiana. Entre o espanto e o sorriso, ele me abraçou e disse apenas “Obrigado”. Fiquei com um exemplar autografado do livro “Poemas que o tempo semeou”, que eu já havia lido às escondidas, anos depois daquela fuga pelos telhados, época em que continuei fazendo perguntas impertinentes e soube que o comunista se chamava Laci Osório.
Novo corte, primavera de 1983, em São Luiz Gonzaga. O poeta Laci Osório aparece na cidade, para visitar amigos e divulgar os dois volumes de suas memórias, sob o título “Questão de vida”. Aparece no jornal A NOTICIA e me reencontra com muita alegria. Nos braços, vários pôsteres com longos poemas, ilustrados por artistas plásticos conhecidos, como Vasco Prado e Danúbio Gonçalves.
Continuava empolgado com sua poesia comprometida com o destino do homem. Nunca deixou de ser o poeta da classe operária, um agitador de consciências. Assim sempre viveu, até o fim, aos 88 anos, em Porto Alegre. Quando penso nele, a imagem que surge é aquela em que, misto de poeta e aventureiro, salta sobre os telhados, abrindo, pela primeira vez, os olhos de um adolescente sonhador.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Bastinhos e a ditadura


Tempos atrás, o Wolmer Jardim revelou nestas páginas a falta que faz a Uruguaiana a figura invulgar de Ângelo Martins Bastos Neto. Aí, evocando o ano de 1973, concordei, rememorando um caso envolvendo Bastinhos e este escrevinhador. Na época com 24 anos, eu era editor da “Folha de Uruguaiana” e virei alvo da ditadura por ter cometido um “crime” involuntário. Quem cuidava da redação era apenas eu, com eventuais colaboradores, além de contar com uma secretária. Certa tarde, acabei me atrasando para remeter o malote via rodoviária com os originais para Santana do Livramento, onde era impresso o semanário, nas oficinas de “A Platéia”. Na pressa, acabei colocando junto às matérias um telegrama do governo federal. Quando saiu o jornal, o teor do telegrama estava impresso justamente na capa da edição. Dizia que ‘estava terminantemente proibida a veiculação de qualquer notícia sobre a Frente Ampla do MDB’. Essa Frente, com Pedro Simon e Ulisses Guimarães, tentava montar um partido de oposição ao governo militar.
No mesmo dia, dois integrantes da Polícia Federal de Uruguaiana me “convidaram” a comparecer na sua sede, junto ao prédio da Receita Federal, nas proximidades da Ponte Internacional. Fui colocado numa sala e dois agentes começaram a fazer perguntas, às quais eu não respondia. Minutos depois, chegou ao local, avisado sabe-se lá por quem, o advogado Ângelo Martins Bastos Neto. Mal ele entrou, chamou os policiais em particular. Minutos depois, saí dali com Bastinhos, que disse para não me preocupar mais com aquilo. “Qualquer coisa, me avisa”, acentuou.
Embora tenha me safado no primeiro dia, os agentes da PF insistiam em levar-me novamente. No dia seguinte, um amigo da Receita Federal alertou: os federais iriam me ‘recolher’ novamente. Avisei Bastinhos, que apareceu no jornal com um acompanhante muito especial: o então vice-prefeito de Uruguaiana, Newton Ulrich, também advogado. Na época, Uruguaiana tinha prefeito e vice nomeados, por ser área de segurança. Bastinhos e Ulrich eram da Arena, o partido da situação durante os anos de chumbo.
Pois chegaram dois agentes para me ‘convidar ao passeio’. Lembro do jeito abobalhado deles, ao encontrar aqueles dois respeitáveis defensores ao meu lado, com Bastinhos dizendo que nós iríamos no seu carro. Na sede da PF, eles se trancaram num escritório e saíram logo depois. Imagino o que houve naquela sala em matéria de persuasão. Nunca mais me incomodaram e eu fiquei com uma gratidão eterna a esses dois homens que estavam acima de siglas e ideologias, vendo em mim apenas um jovem jornalista injustiçado por uma ação involuntária.
Dois dias depois, um combativo vereador do MDB, Arnaldo D’Augustin Ribeiro, usou a tribuna da Câmara Municipal para louvar “a ação corajosa do jornalista Newton Alvim contra a censura à imprensa”, com o discurso incluído em ata e repetido nas rádios locais. Fiquei novamente preocupado e até deixei de sair à noite por uns tempos, já que andava na berlinda de uma maneira que muitos tentavam evitar – por receio e medo, sabendo que além da ponte, em Paso de Los Libres, havia uma chácara onde sumiam dissidentes argentinos e também brasileiros. As duas ditaduras se completavam além do Rio Uruguai.
Assim, não nego que tive sorte e às vezes me pergunto o que iria ocorrer se não fossem aqueles dois arenistas renitentes diante da ditadura. Ao indagar a Bastinhos sobre os honorários, ele esboçou aquele seu sorriso triste e disse: “Não deve nada, rapaz. Fizemos nossa obrigação”. Newton Ulrich assentiu com a cabeça. Hoje, os vejo como anjos da guarda habitando o meu alforje de afetos.
Na foto, este colunista entrevista Bastinhos, na década de 70
Arquivo pessoal

Entrevistando Martha


Consagrada como cronista, Martha Medeiros anda sem tempo para nada, agora que os compromissos aumentaram devido ao sucesso do filme “Divã”, baseado em seu livro do mesmo nome, que antes de ir para a tela fez uma bela carreira no teatro e pode ser conferido nas videolocadoras da cidade. Hoje com 48 anos, aparentando bem menos, ela diz estar com “o espírito muito mais aberto do que tinha antes” e que “escrever é terapêutico”. Casada, duas filhas, faz caminhada e musculação. Adora ler, viajar, vinho tinto e cinema. Ah, não fuma nem faz terapia e torce pelo Internacional. Entre uma e outra brecha na sua agenda, nossos e-mails se cruzaram várias vezes e o resultado é esta proveitosa entrevista. Deliciem-se.

Como você consegue essa quase unanimidade em torno de suas opiniões sobre os mais diversos assuntos? O segredo estaria em se expor sem reservas?
MARTHA - Todos que escrevem se expõem, principalmente quem escreve sempre na primeira pessoa, como eu. A alma fica escancarada e isso estabelece certa cumplicidade com o leitor. Não acredito que eu seja uma unanimidade. Há gente que não gosta do meu trabalho, só que costumam não se manifestar, o que atribuo a um respeito que conquistei, ou seja, não gostam, mas percebem que existe honestidade no meu ofício. Mas, para minha sorte e prazer, são muitas as pessoas que se identificam com o que escrevo e acho que isso acontece porque trato sobre assuntos mundanos com leveza e seriedade ao mesmo tempo.

Essa sensibilidade que mostra nas crônicas foi exposta a partir de que idade? A época da adolescência influiu muito na Martha de hoje?
MARTHA - Eu era bem mais fechada, introspectiva, e lia muito, o que me deu certo embasamento. Mas só comecei a expor meus sentimentos e ideias a partir da fase adulta. Costumo brincar que na adolescência eu era uma velha e hoje, aos 48, me sinto mais jovial, mais animada, mais disposta para o que a vida traz. Tenho o
espírito muito mais aberto do que tinha antes.

Quando escolhe um tema já sabe como explorá-lo e o texto sai com facilidade? E ocorre quando o assunto não avança?
MARTHA - Eu escolho o tema, mas só vou saber o que realmente penso sobre ele enquanto escrevo. As palavras jorram no automático, é quase uma psicografia! Eu mesma me surpreendo, às vezes, com o rumo que a crônica tomou. Por isso que eu digo que escrever, para mim, é terapêutico, promove meu autoconhecimento até hoje. E há ocasiões em que empaco, sim. Tem vezes que meu raciocínio se encerra num único parágrafo. E aí o que fazer para preencher o resto do espaço? Nessas
Horas, é preciso desistir do texto e começar outro.

A sensatez pauta o que você escreve, junto a um sentido de liberdade que parece aliviar seu cotidiano. Até que ponto a Martha se desnuda nas crônicas?
MARTHA - Só existe a Martha verdadeira, não existe outra. Em tudo o que faço, vivo, sofro e me coloco inteira. Não há um personagem por trás, mas claro que não somos blocos monolíticos. Eu tenho o meu lado de aventureira, meu lado careta, meu lado convencional, meu lado roqueira, meu lado maternal, meu lado masculino, meu lado mulherzinha. Enfim, não me reduzo a um único perfil, mas me sinto muito íntegra nessa pluralidade, que, volto a dizer, não é só minha, é característica de todos nós. Mesmo quando escrevo ficção, não consigo me afastar muito de quem sou.

Um novo livro à vista, neste ano? Pretende voltar à poesia?
MARTHA - Pretendo, mas os dias passam tão ligeiros, há tantos compromissos, tantas viagens, tantos prazos de entrega... A crônica me absorve muito e a poesia demanda certa paz para escrever. Não estou conseguindo “agendá-la” no meu corre-corre, mas é um compromisso que estabeleci para mim: ano que vem, publicarei novos poemas e também um novo livro de ficção. Não haverá lançamento neste ano, que incrivelmente já está na sua metade final.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Como contar um conto


Você já pensou em se dedicar ao conto? Pois a L&PM está dando um raro presente, lançando, em nova e caprichada edição, o “Decálogo do perfeito contista”, do uruguaio Horacio Quiroga, com organização de Sergio Faraco e Vera Moreira. Conhecedor da obra desse grande contista uruguaio, Faraco traduziu diversos de seus títulos. Este manual é uma obra crítica com a força narrativa de Quiroga, em uma versão enriquecida com bibliografia sobre o ofício da escrita para os novos autores que desejam persistir na ficção, sobretudo no conto, além de uma cronologia da vida e obra desse gênio da história curta.
Afinal, até que ponto funciona um receituário para a escrita? Quem está metido no ramo sabe que isso pode ser em vão. No entanto, em alguma coisa ajuda, como acreditava Quiroga, que se suicidou em 1937, depois de uma vida de seguidas tragédias. O certo é que ele aprendeu a escrever muito bem e procurou deixar isso para a posteridade. Fã do autor uruguaio, Sergio Faraco, que vem a ser um dos melhores contistas brasileiros, enriqueceu o “Decálogo...” com as impressões de importantes autores, que se apressam em dizer que não há fórmula infalível para escrever bem.
Tudo bem, a gente já sabe que não existe o grande segredo. Mas, como ressalta Faraco, há alguns preceitos deste manual de 168 páginas que são bem-vindos para os que se aventuram a escrever. Quiroga ensina, por exemplo, a contar uma história a partir do seu final, o que não deixa de ser interessante. O resultado é um livro curioso, com comentários às vezes irônicos, às vezes engraçados de Aldyr Garcia Schlee, Charles Kiefer, Cíntia Moscovich, Deonísio da Silva, Fábio Lucas, Flávio Moreira da Costa, Hélio Pólvora, Jacob Klintowitz, Jaime Prado Gouvêa, José Castello, Luís Augusto Fischer, Luiz Antonio de Assis Brasil, Marcelo Backes, Miguel Sanches Neto, Moacyr Scliar, Nelson de Oliveira, Paulo Hecker Filho, Roberto Gomes, Silveira de Souza e Sonia Coutinho. Uma turma que diz o que pensa com autoridade.
Claro que a maioria dos escritores concorda que um ponto é essencial: é preciso ler muito para escrever bem. E no caso do conto, é preciso ler Faraco e Quiroga. Vale acrescentar: deve-se ler os que sabem realmente escrever, assim como apreender suas dicas espalhadas em entrevistas ou nas memórias. O primeiro conselho é meter a cara e escrever de qualquer jeito e depois ir melhorando, podando o excesso, principalmente adjetivos - onde os iniciantes exageram. O processo é lento, individual, solitário e muitas vezes sofrido. As oficinas literárias, como a da Vera Ione Molina Silva, ajudam a encurtar o caminho e a não fazer bobagens, a sofrer menos, a ter disciplina e dedicação. Isso já é bastante para um aprendiz, que deve ser imensamente grato.
Sobre o conto, costuma-se dizer que em cada parágrafo há duas frases decisivas: a primeira e a última. Esse é um bom atalho para chegar lá e Quiroga sabia fazer isso como o mestre que era. Fernando Sabino costumava dizer que “é preciso descascar o texto como quem descasca uma fruta, ir buscar a semente. Escrever é principalmente cortar”. Isso mesmo, cortar, cortar, como faz Faraco e como fazia Quiroga. Outro mestre do texto curto, o argentino Jorge Luis Borges, começou uma aula dizendo: “Dediquei a maior parte da minha vida à literatura e só posso lhes oferecer dúvidas”. Nada mais verdadeiro. Dúvidas sempre acompanham os escrevinhadores de textos longos e curtos até o fim da vida. A chave desse ofício não existe, apesar da tentativa de Quiroga em provar o contrário com seus 10 mandamentos, que pelo menos mostram algum rumo confiável. O segredo é tatear no escuro até encontrar a fechadura. E não raro, dá-se de cara na porta errada. Em suma, escritores são uns teimosos irremediáveis.