
Outono de 1964, em Uruguaiana. Um adolescente de 15 anos, sentado no degrau de entrada de sua casa, se espanta em ver vários policiais invadindo a quadra em que morava, na Rua João Manoel, entre a Duque de Caxias e a 15 de Novembro. O alvo dos homens da lei é o armazém “O Melhoral”, que se encontra fechado. Eles cercam o estabelecimento e tentam forçar as duas portas da frente, diante de uma plateia que sai do nada e se aglomera em volta.
Mais distanciado, o adolescente, que era eu, observa aquilo como uma cena de cinema, com os policiais empunhando rifles e pistolas, sob as ordens de um delegado que não para de gritar. Mas eles procuram o Seu Jacy, um homem quieto, que vive da venda de secos e molhados? Era esquisito, aquilo. De repente, minha atenção é atraída por algo que se movimenta no telhado. É a cabeça inquieta de um homem de cabelos revoltos e grisalhos nas têmporas. Ele olha para os lados e avança devagar, até dar um salto para o telhado da casa vizinha, onde mora a família do hoje escritor Tabajara Ruas. Após esse movimento, o homem sonda o terreno e me avista. No instante seguinte, coloca o dedo indicador na boca, pedindo silêncio. Com o coração aos arrancos, fico quieto. Olho para o armazém e vejo os policiais entrando pela porta arrombada. Quando volto o olhar para o telhado, o homem havia sumido.
Contaram depois que o Seu Jacy havia abrigado um poeta comunista que esteve exilado sob perseguição do Estado Novo de Getúlio Vargas e na ocasião fazia frente ao regime militar. Seus livros foram apreendidos no vagão de um trem da estação de Cacequi, então sempre apinhada de gente, devido às baldeações. O poeta havia se aproveitado da multidão e escapara daquele trem e os policiais souberam que estava a caminho de Uruguaiana. Curioso, perguntei se alguém na vizinhança tinha um de seus livros e me olharam com estranheza. O que eu estava querendo com os livros de um comunista? Duas comadres disseram que iriam advertir meus pais “sobre essa pergunta do guri besta que podia complicar a vida de todos”.
Corte para verão de 1972, em Sant`Ana do Livramento. Um homem magro e ágil sobe os degraus de um casarão que abrigava o jornal “A Plateia”. Na redação, queria divulgar os livros e um álbum de postais que carregava. Era o poeta alegretense Laci Osório, então com uns 60 anos. Eu e o jornalista Moisés Mendes – hoje editor especial de “Zero Hora” – fomos incumbidos de entrevistá-lo, eu pela ligação com a literatura e Moisés ser também originário das margens do Ibirapuitã.
Na ocasião, eu e Moisés ficamos encantados com as palavras criativas que ele colocava nas respostas, dando um valioso testemunho à nossa geração e à importância que dava às questões sociais. Para ele, a arte era um bom motivo de combate e isso fazia da maneira que conhecia, valorizando o ser humano, principalmente as classes exploradas. “Eu faço letras que cantam e lutam”, frisava. Na despedida, a sós, revelei que era o adolescente que o avistara num telhado, em Uruguaiana. Entre o espanto e o sorriso, ele me abraçou e disse apenas “Obrigado”. Fiquei com um exemplar autografado do livro “Poemas que o tempo semeou”, que eu já havia lido às escondidas, anos depois daquela fuga pelos telhados, época em que continuei fazendo perguntas impertinentes e soube que o comunista se chamava Laci Osório.
Novo corte, primavera de 1983, em São Luiz Gonzaga. O poeta Laci Osório aparece na cidade, para visitar amigos e divulgar os dois volumes de suas memórias, sob o título “Questão de vida”. Aparece no jornal A NOTICIA e me reencontra com muita alegria. Nos braços, vários pôsteres com longos poemas, ilustrados por artistas plásticos conhecidos, como Vasco Prado e Danúbio Gonçalves.
Continuava empolgado com sua poesia comprometida com o destino do homem. Nunca deixou de ser o poeta da classe operária, um agitador de consciências. Assim sempre viveu, até o fim, aos 88 anos, em Porto Alegre. Quando penso nele, a imagem que surge é aquela em que, misto de poeta e aventureiro, salta sobre os telhados, abrindo, pela primeira vez, os olhos de um adolescente sonhador.
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