quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Um poeta no telhado


Outono de 1964, em Uruguaiana. Um adolescente de 15 anos, sentado no degrau de entrada de sua casa, se espanta em ver vários policiais invadindo a quadra em que morava, na Rua João Manoel, entre a Duque de Caxias e a 15 de Novembro. O alvo dos homens da lei é o armazém “O Melhoral”, que se encontra fechado. Eles cercam o estabelecimento e tentam forçar as duas portas da frente, diante de uma plateia que sai do nada e se aglomera em volta.
Mais distanciado, o adolescente, que era eu, observa aquilo como uma cena de cinema, com os policiais empunhando rifles e pistolas, sob as ordens de um delegado que não para de gritar. Mas eles procuram o Seu Jacy, um homem quieto, que vive da venda de secos e molhados? Era esquisito, aquilo. De repente, minha atenção é atraída por algo que se movimenta no telhado. É a cabeça inquieta de um homem de cabelos revoltos e grisalhos nas têmporas. Ele olha para os lados e avança devagar, até dar um salto para o telhado da casa vizinha, onde mora a família do hoje escritor Tabajara Ruas. Após esse movimento, o homem sonda o terreno e me avista. No instante seguinte, coloca o dedo indicador na boca, pedindo silêncio. Com o coração aos arrancos, fico quieto. Olho para o armazém e vejo os policiais entrando pela porta arrombada. Quando volto o olhar para o telhado, o homem havia sumido.
Contaram depois que o Seu Jacy havia abrigado um poeta comunista que esteve exilado sob perseguição do Estado Novo de Getúlio Vargas e na ocasião fazia frente ao regime militar. Seus livros foram apreendidos no vagão de um trem da estação de Cacequi, então sempre apinhada de gente, devido às baldeações. O poeta havia se aproveitado da multidão e escapara daquele trem e os policiais souberam que estava a caminho de Uruguaiana. Curioso, perguntei se alguém na vizinhança tinha um de seus livros e me olharam com estranheza. O que eu estava querendo com os livros de um comunista? Duas comadres disseram que iriam advertir meus pais “sobre essa pergunta do guri besta que podia complicar a vida de todos”.
Corte para verão de 1972, em Sant`Ana do Livramento. Um homem magro e ágil sobe os degraus de um casarão que abrigava o jornal “A Plateia”. Na redação, queria divulgar os livros e um álbum de postais que carregava. Era o poeta alegretense Laci Osório, então com uns 60 anos. Eu e o jornalista Moisés Mendes – hoje editor especial de “Zero Hora” – fomos incumbidos de entrevistá-lo, eu pela ligação com a literatura e Moisés ser também originário das margens do Ibirapuitã.
Na ocasião, eu e Moisés ficamos encantados com as palavras criativas que ele colocava nas respostas, dando um valioso testemunho à nossa geração e à importância que dava às questões sociais. Para ele, a arte era um bom motivo de combate e isso fazia da maneira que conhecia, valorizando o ser humano, principalmente as classes exploradas. “Eu faço letras que cantam e lutam”, frisava. Na despedida, a sós, revelei que era o adolescente que o avistara num telhado, em Uruguaiana. Entre o espanto e o sorriso, ele me abraçou e disse apenas “Obrigado”. Fiquei com um exemplar autografado do livro “Poemas que o tempo semeou”, que eu já havia lido às escondidas, anos depois daquela fuga pelos telhados, época em que continuei fazendo perguntas impertinentes e soube que o comunista se chamava Laci Osório.
Novo corte, primavera de 1983, em São Luiz Gonzaga. O poeta Laci Osório aparece na cidade, para visitar amigos e divulgar os dois volumes de suas memórias, sob o título “Questão de vida”. Aparece no jornal A NOTICIA e me reencontra com muita alegria. Nos braços, vários pôsteres com longos poemas, ilustrados por artistas plásticos conhecidos, como Vasco Prado e Danúbio Gonçalves.
Continuava empolgado com sua poesia comprometida com o destino do homem. Nunca deixou de ser o poeta da classe operária, um agitador de consciências. Assim sempre viveu, até o fim, aos 88 anos, em Porto Alegre. Quando penso nele, a imagem que surge é aquela em que, misto de poeta e aventureiro, salta sobre os telhados, abrindo, pela primeira vez, os olhos de um adolescente sonhador.

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