quarta-feira, 14 de julho de 2010

Lembrando Rillo




No mês passado, São Borja lembrou os 15 anos de morte de Apparício Silva Rillo, um dos maiores expoentes culturais do Rio Grande do Sul. Ainda adolescente, nos anos 60, em Uruguaiana, eu entraria em contato com sua poesia, através do primeiro livro, “Cantigas do tempo velho”. Esse volume marcaria o início de sua exitosa carreira literária, que incluiria poesias, composições musicais, ensaios históricos e até textos para teatro, além dos famosos causos reunidos na série “Rapa de tacho”, um dos maiores sucessos editoriais gaúchos, com mais de 70 mil exemplares vendidos.

Meu primeiro contato com Rillo ocorreu durante a Mostra da Arte Missioneira realizada no Clube Harmonia, em setembro de 1983. Na época, estávamos juntos numa sessão de autógrafos. Eu lançava meu livro “Dioguinho Manta”, enquanto Rillo autografava sua nova obra, “Itinerário de Rosa”. Um mestre e um aprendiz, com a ocasião servindo para conversarmos sobre literatura e trocar amabilidades. Ele me presenteou com o desenho publicado acima, dizendo: “Fica com esta garatuja, como lembrança.” Não deixei por menos e dei-lhe a caricatura de um gaúcho, com uma dedicatória que não lembro. Sua esposa, Suzy Rillo, simpática, elegante e discreta, estava por perto e pediu-me um autógrafo no meu livro, para as filhas.

Eu veria Rillo somente em outra ocasião, igualmente em São Luiz Gonzaga, durante uma das edições da Feira do Livro da Prefeitura. Ele me saudou assim: “Mas é o Alvim do Dioguinho!” Gostara do livro e me fez perguntas sobre o que eu andava escrevendo, dando palavras de incentivo. De bom coração, era um dos poucos escritores que se interessava pelo que os outros andavam criando, escrevendo, musicando. Assim, incentivou o aparecimento de vários poetas e compositores. No final da feira, junto com alguns amigos, fomos para o Restaurante San Francisco, onde ele fez questão de acompanhar a apresentação musical que ocorria na ocasião. Adorava a música que falava dos costumes campeiros e da condição do gaúcho, seu cavalo e a rotina campesina.

A obra de Rillo, de cunho regionalista, lhe deu a condição de ser um dos grandes poetas do Rio Grande do Sul. E foi além, pois se identificou como um dos poucos que soube se dividir entre o verso regionalista e o de cunho universal. Eclético, enveredou pelo conto, pela novela, pelos trabalhos de fundo histórico e folclórico, com um texto leve e envolvente. No meio, sempre, estava o gaúcho enveredando pelos bolichos, onde encontrava a cachaça, a carpa para o jogo do truco e as canchas para a bocha e o jogo do osso. Ele retrataria os tipos mais singulares da vida campeira, como o fazendeiro, o peão de campo, o capataz, o esquilador, o tropeiro, o domador, o carreteiro e o contrabandista, o jogador profissional e até o chamado "orelhador de sota" dos comércios de carreira.

Isso tudo está nos poemas de “Cantigas do tempo velho” nos livros que viriam depois como “Viola de canto largo” e “Caminhos de viramundo”. Esses livros e outros estão à disposição de quem quiser conferir, na Magia das Letras. Publicando seus poemas na imprensa de Porto Alegre, Rillo era equiparado a Jayme Caetano Braun e Glaucus Saraiva. O merecimento literário valeu-lhe uma cadeira na Academia Rio-Grandense de Letras, em 1981, além de um sem-número de títulos, láureas e prêmios. Quando o acompanhei naquela sessão de autógrafos no Clube Harmonia, ele já era tudo isso e parecia professar uma lição de humildade. Num dos livros que me ofertou, anotou no rodapé: “Escreva sem se preocupar com os outros. O que vale é a tua crença.” Assim era Rillo, um artista da palavra que sabia valorizar a simplicidade. Com aquela mesma humildade que vemos neste desenho inédito - que nos toca e comove.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Um dia em Paris

Vendo um anúncio sobre o filme “Um dia em Paris” (que ainda vou assistir), peguei o mote para esta crônica. Ah, se eu ganhasse um dia para visitar Paris, que fosse no início da primavera ou no começo do outono, como sugeriu uma amiga que reside lá. Assim, não estaria muito quente e os dias seriam mais bonitos. Eu percorreria aqueles caminhos milenares na certeza de que nada escaparia ao meu olhar sequioso em alcançar as etapas que se descortinariam com natural generosidade. Diante da Cidade-Luz a celebrar os 120 anos da Torre Eiffel, eu estaria atento a tudo e subiria ali de um jeito abobalhado, cheio de espanto diante da vista deslumbrante. E como um hóspede teimoso, me demoraria além do permitido, imaginando as histórias ambientadas naquele ícone de ferro e charme.
Com um dia para percorrer Paris, eu seria caminhante, munido de um guia imaginário. Saberia conter a sofreguidão de querer abarcar todas as paixões parisienses de uma só vez, dizendo em voz baixa que o tempo é mais do que suficiente. Sim, um tempo necessário para ser caminhante por ruas de tantas construções antigas, incluindo a Catedral de Notre Dame, onde poderia avistar, espreitando de dentro de um nicho, o corcunda Quasimodo com a cara do Anthony Quinn naquele filme famoso. Olharia com fingido desdém para as vitrinas de luxo de Champs Élysées, concentrado em imaginar qual o ponto exato em que a linda Jean Seberg conheceu Jean-Paul Belmondo, no clássico “Acossado”.
Com um dia para desbravar Paris, ignoraria os mapas para turistas apressados e buscaria a poesia das ladeiras de Montmartre, entre bares, restaurantes e todos os cantos que possivelmente guardam as marcas dos passos de escritores e artistas que um dia buscaram a fama e tinham a certeza que estavam no lugar certo. Eu teria disposição de menino para subir as intermináveis escadarias do Sacré Coeur e lá no alto ficaria rodopiando diante da vista que se descortinaria como um presente inimaginável. Eu olharia para os pintores de rua, diante das portas do templo, como se fossem irmãos da poesia e compraria um dos seus quadros com admiração incontida, como alguém fez décadas atrás, levando para casa uma obra daquele desconhecido espanhol que assinava Picasso – que agora tem por lá um museu no Marais, o qual visitaria por causa das suas telas iluminadas.
Ah, se eu ganhasse um dia para conhecer Paris, meus sapatos me levariam às margens do Sena. Aí, eu deteria o olhar nas suas águas, meio enlevado em longos minutos. Depois, percorreria as vielas líricas do Quartier Latin, onde numa época sonhei morar, talvez motivado pela rebeldia da juventude. Eu me veria perdido por ali, caminhando mais um pouco e entrando num dos tantos bistrôs do Marais, onde beberia algo característico do lugar, como fizeram Hemingway e seus companheiros da Geração Perdida, sob o olhar complacente de Gertrude Stein. Por ali, certamente enfeitiçado, eu poderia inventar de não voltar, já que a vida é tão curta e a chance de vivê-la de verdade seria aquela e nunca mais.
Com um dia para conhecer Paris, faria o tempo se alongar, mesmo parecendo ainda mais curto para tanta grandiosidade retida no lugar. Eu olharia os casais apaixonados e me sentaria à mesa de um café na calçada e pediria um Bordeuax, que os franceses chamam de “gran vin”. Depois, enlevado, me dirigiria para os lados dos cabarés de Place Pigalle e conversaria com habitantes da noite sobre os mistérios escondidos daquelas ruas existencialistas. Também iria ao Moulin Rouge e desbravaria suas adjacências, achando ter percorrido muito e sabendo que ainda faltaria tanto para chegar ao âmago da cidade.
Ah, se eu for a Paris, mesmo por apenas um dia, tudo o mais não teria importância e eu me sentiria como um caminhante privilegiado entre as tantas estrelas e aquela única luz que faz dessa a cidade sonhada pelos que amam a vida na plenitude. No final do passeio, olharia para baixo e veria, com a naturalidade dos poetas que gostam de caminhar, que meus sapatos estariam floridos por ter pisado naquele chão abençoado pelos que sabem viver.

Alex garcia, um lutador


Neste sábado, finaliza a Semana Internacional da Surdocegueira, como bem nos alertou o Alex Garcia, especialista graduado em Educação Especial e presidente da Associação Gaúcha de Pais e Amigos dos Surdocegos e Multideficientes (Agapasm). Sempre atento aos que sofrem com a perda das cores e dos sons, ele faz da vida um compromisso com a dor alheia, ensinando a todos que é possível viver com limitações, por mais duras que essas sejam. Antes de tudo, sabe ser um lutador como poucos. E sempre foi assim, desde a infância, quando questionava os professores sobre seus direitos na escola, como reza a Constituição que poucos conhecem e acatam. Assim, brigando pelo certo e justo, foi se instruindo, até obter o sonhado diploma em Educação Especial, na Universidade Federal de Santa Maria. Sabendo seu rumo, inquieto, Alex ainda fez Especialização. Hoje, é um respeitado nome na área, sempre convidado a dar palestras no Brasil e no exterior.

No seu livro “Surdocegueira – Empírica e científica” (Gráfica A Notícia, 2008), Alex Garcia conta que “as dificuldades que tive na universidade foram muitas e variadas. Mas acredito que o que mais me marcou foi a falta de valorização, consideração e respeito às minhas diferenças por parte de colegas e professores. Claro que muitas dessas dificuldades entendia como naturais, pois eu era o primeiro aluno com deficiência que chegara ao curso de Educação Especial, em toda a história da UFSM”. Pioneirismo, aliás, é uma marca na trajetória do filho mais velho de dona Eloá e seu Enio e irmão de Alan, acadêmico de Educação Especial. Como frisou Alex, essa universidade não estava preparada para recebê-lo. Vencendo obstáculos a cada dia, ele foi assimilando as diferenças, errando muito, acertando algumas vezes, mas sempre em pé, cabeça erguida, dizendo e repetindo a que veio nessa luta renhida que se chama vida.

Portador de uma rara síndrome que inclui a surdocegueira e outras anormalidades, Alex Garcia, no entanto, é dono de uma força de vontade inabalável. Por isso os desafios são com ele mesmo. Os amigos sentem-se bem na sua companhia por ser um animador nato que costuma fazer piadas, numa forma de animar os outros diante de alguns olhares de desdém e de palavras envenenadas pelo preconceito que vez e outra surgem por aí. Mesmo com a soma de duas grandes deficiências, ser cego e surdo, ele sabe tirar grandes lições do seu cotidiano. Sua voz é clara e bonita e conquista as pessoas em grandes espaços. Sabe ser um bom orador no improviso que moldou sua luta com o que tem de mais valioso: o cérebro. O que está na sua cabeça tem sons, cores e movimentos e é lá que ele domina todos os sentidos com independência e desenvoltura, vencendo o silêncio e a escuridão.

É o ato diário de ir além que faz de Alex Garcia alguém especialmente diferente. É o ato de assimilar o mundo ao redor que o distingue dos outros e o faz aproveitar cada momento da vida e suas contingências. Para um surdocego sempre há várias metas que se impõem, como bem sabe Alex, que assimila as perdas com um sorriso um tanto amargo, como os desses heróis que nos ensinam lições de vida que merecem ser recontadas. Aliás, o termo “herói” também se encaixa em Alex, assim de brincadeira, assim de verdade, como quis uma escritora cearense, ao escolhê-lo como protagonista do seu livro para crianças. É esse herói que está a dizer que “não importa o quanto as coisas estão e são difíceis. Desistir seria depor as armas antes da luta. Eu posso perder, mas somente depois de ter tentado”. Essas são palavras de Alex Garcia, um lutador.

A sucessão de dificuldades moldou a personalidade de Alex, que continua a encarar a vida naquilo que há de mais desafiador, que é a conquista da inclusão e a chance de modificar o sistema vigente, visando uma vida mais digna para os deficientes. Ele nunca desiste de ser crítico sob uma ótica construtiva e reflexiva e, por isso mesmo, abraça as mais diversas causas para que todos possam exercer plenamente a sua cidadania. Desde os anos escolares, sua luta é constante, o que torna alentado seu currículo de batalhas ganhas. Alex define-se como um idealista, desses que querem ajudar a mudar o mundo, como contou no seu livro. “Serei sempre aquele que irá lutar contra a injustiça, a exploração, o preconceito. Enfim, onde houver um problema, eu poderei estar presente, defendendo a liberdade, a igualdade e a dignidade, sempre com esperança”. Assim falaria um herói. Assim fala Alex Garcia, um lutador que renova sua esperança em cada amanhecer.